"A Defensoria Pública da União dá assistência
jurídica a quem não pode pagar. Mas sofre com a falta de quadros, estrutura e
autonomia
Por Martha Mendonça
O
paraibano Serafim Simeão, de 71 anos, é o oitavo de 20 irmãos. Migrou para o
Rio de Janeiro há 50 anos. Fez bicos, trabalhou numa cooperativa de táxis e,
depois de sofrer oito assaltos, passou a atuar como pedreiro. Há cinco anos,
sofreu um derrame, que lhe deixou sequelas em todo o lado esquerdo do corpo.
Simeão caminha mancando. Um dos braços não lhe obedece. Viúvo, mora numa casa
alugada em Bangu, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Quando foi atrás de sua
aposentadoria, descobriu várias irregularidades em suas contribuições. Por
isso, não teria direito a um beneficio. Impedido de trabalhar, não sabia como
pagar suas contas.
Num
dos postos do INSS, um porteiro sugeriu que ele procurasse um lugar de nome
“complicado”: a Defensoria Pública da União, perto do mercado popular da
Uruguaiana, um dos formigueiros humanos do centro do Rio de Janeiro. Simeão
pegou dois ônibus para chegar até lá. Decisão acertada. Depois de receber
assessoria jurídica da DPU, há quase um ano ele recebe seu benefício. Seu caso
foi coberto pela Lei Orgânica de Assistência Social (Loas), que permite a
pessoas carentes ter direito a um benefício assistencial. Ele agora ganha um
salário mínimo - R$ 622. Pouco, se comparado a seus gastos: R$ 200 de aluguel e
contas gerais, mais pelo menos R$ 80 de remédios para pressão e colesterol todo
mês. Fora a comida. Uma das cinco filhas o ajuda quando pode.
A
história de Serafim Simeão é semelhante à de muitos outros brasileiros que, no
momento de se aposentar, deparam com problemas de contribuição - ou com a
própria burocracia. A atuação das Defensorias Públicas da União tem sido
sinônimo de sobrevivência na vida de gente como ele. Mas esse órgão, cuja
missão é representar o cidadão em ações contra a União, ao oferecer assessoria
jurídica a brasileiros carentes, precisa de advogados. Em suas sedes,
espalhadas pelas capitais e por algumas outras poucas cidades, a DPU tem
estrutura muito aquém de sua importância. O corpo de defensores é considerado
pequeno demais: 474 para todo o território nacional. Do outro lado da mesa,
defendendo os interesses - também legítimos - da União, a Advocacia-Geral da
União (AGU) conta com a ação de quase 7.970 advogados.
As
instalações das DPUs são precárias, com equipamentos e infraestrutura
ultrapassados. O quadro administrativo é mínimo. “Os defensores instalam cabos,
saem para comprar papel e copo de plástico, muitas vezes do próprio bolso”, diz
o advogado Eraldo Silva Junior. Por dois anos, ele liderou a equipe da DPU no
Rio de Janeiro. Marcus Vinicius Lima, defensor-chefe da DPU de São Paulo,
conhece bem esse enredo. “Aqui estamos sem contrato de manutenção. A bomba de
água enguiçou, tive de ficar quatro meses ligando e desligando todos os dias,
eu mesmo. E não ganho nada pelo cargo de chefia. Coordeno tudo mantendo minhas
atribuições regulares de defensor.” São Paulo, o Estado mais populoso do
Brasil, tem o maior número de defensores: 60. No Rio de Janeiro, são 46. Em
Estados com menos habitantes, mas dimensões territoriais imensas, como o
Amazonas, há sete - e somente na capital, como ocorre na maioria dos outros
Estados fora do eixo Sul-Sudeste. Para chegar a Manaus, onde fica a sede da DPU
amazonense, pessoas das comunidades ribeirinhas viajam até cinco dias de barco
para conseguir assessoria jurídica gratuita. A imensa maioria das subseções da
Justiça Federal no país não tem uma unidade da DPU. Os raros atendimentos
itinerantes realizados mostram que, além da necessidade de melhorar as
condições das defensorias nas grandes cidades, é urgente levá-las ao interior.
Vice-presidente da Associação Nacional dos Defensores Públicos, lotado no Rio
de Janeiro, o advogado Thales Treiger participou de um atendimento itinerante
na região do Alto Purus, no Acre. O que seria o atendimento de apenas uma tarde
transformou-se num trabalho de três dias. “Fizemos de tudo: de conciliação em
briga de vizinhos a uma audiência com índios por uma questão territorial”,
afirma.
A
falta de estrutura das DPUs deixa algumas áreas dos direitos dos cidadãos
descobertas. Com as imensas demandas nas áreas cível (que envolve remédios e
equipamentos), previdenciária e criminal, perdem as questões trabalhistas
ligadas à União. Quem enfrenta entraves com algum órgão federal e não tem
dinheiro para pagar um advogado fica sem defesa. É o caso da funcionária do Ministério
da Saúde Rosana Pereira, de 47 anos. Ela procurou a DPU no centro do Rio,
munida de documentos e comprovantes de renda, para tentar conseguir
gratificações que deixou de receber durante dez anos. Em vão. “Não vou ter
dinheiro para pagar um advogado particular. Não sei o que fazer.”
A
assistência jurídica contra o Estado é um elemento básico da cidadania. “Não
existe democracia se os cidadãos não têm acesso à defesa contra a União”, diz o
jurista e professor de Direito Wal-ter Maierovitch, ex-desembargador do
Tribunal de Justiça de São Paulo. “A situação das DPUs comunica ao povo que não
existe o princípio da igualdade no Brasil. O Estado não pode ter o monopólio da
Justiça.” Vinculada ao Ministério da Justiça, a DPU depende do Executivo e da
União, para funcionar - e para combater aqueles que a gerenciam. Por isso,
muitos juristas afirmam que, para haver verdadeiro equilíbrio, as defensorias
deveriam ser autônomas.
Caminho
para isso já existe. Desde 2007, está no Congresso um Projeto de Emenda Constitucional
que prevê autonomia administrativa, orçamentária e financeira para as DPUs.
Hoje, uma DPU depende do Executivo para aprovar orçamento, realizar concurso ou
requisitar novos grampeadores. Segundo o projeto, as DPUs poderão enviar suas
propostas e projetos diretamente ao Congresso Nacional, sem passar pelo
Executivo. As demandas seriam aprovadas pelo Legislativo, que não é o alvo das
ações da defensoria. Se não garantir um salto de qualidade imediato, pelo menos
as resoluções não estariam mais nas mãos da União. Em 2004, com a reforma do
Judiciário, as defensorias estaduais ganharam essa autonomia. As defensorias da
União, no entanto, ficaram onde estavam. O projeto da autonomia foi aprovado na
Comissão de Constituição e Justiça, na Câmara e no Senado, em 2011. Falta agora
ser aprovado em plenário nas duas Casas. Mas parou de novo.
As
defensorias públicas - da União e dos Estados - foram criadas pela Constituição
de 1988 (o acesso à Justiça é um direito de pobres e ricos, diz o texto). Só em
1994, seis anos depois, uma lei regulamentou essa criação. A garantia de
assistência jurídica aos mais necessitados é, portanto, uma realidade nova no
Brasil. Antes disso, existia apenas a iniciativa de Ordens de Advogados e de
universidades, que voluntariamente ofereciam seus serviços a quem não podia
pagar por eles. Em 2011, a Organização dos Estados Americanos (OEA) aprovou uma
resolução que recomenda uma Defensoria Pública autônoma e independente. O
Brasil referendou o documento. Por enquanto, tudo não passa de papel e tinta. “Não
existe Justiça sem defensoria pública forte”, diz Pedro Abramovay, jurista e
professor de Direito da Fundação Getulio Vargas.
BRIGADA CARIOCA
Thales Treiger (em pé). Cecilia lessa
da Rocha. Eraldo Silva Junior e leticia Torrano, da OPU do Rio de Janeiro. Um time
de 46 defensores
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Se
a defensoria consegue obter algumas vitórias, elas se devem ao esforço de seus
advogados, que superam obstáculos para fazer seu trabalho. Não é fácil atender
uma população carente e absorvida por suas questões. A gaúcha Letícia Torrano,
de 37 anos, atua na área criminal da DPU do Rio de Janeiro. “Uma vez na DPU,
não dá mais para sair. Vira uma missão”, afirma. De familiares e conhecidos,
ela costuma ouvir uma pergunta: como ela consegue “defender bandido”? “Vejo
nisso um preconceito enorme. Se estivesse numa banca particular, trabalhando
por criminosos ricos, será que fariam essa pergunta?”
Quem
passa no concurso de defensor público tem cacife para trabalhar em qualquer
outra área pública. O salário já foi pior. Hoje é de R$ 12 mil, abaixo de
outras carreiras. Ainda assim é uma boa remuneração. A falta de boas condições
de trabalho incentiva a rotatividade, embora uma parcela cada vez maior se
ocupe da responsabilidade social. A mato-grossense Cecília Lessa da Rocha, de
32 anos, começou sua carreira na Advocacia-Geral da União, em Brasília,
defendendo os interesses do governo federal. Hoje, é a subchefe da DPU do Rio
de Janeiro. “Queria um trabalho que fizesse diferença real e direta na vida das
pessoas. Quando me transferi, minha família brincava que agora, enfim, eu
estava do lado bom da força.”
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